Armando Ribeiro de Araujo
O Setor Elétrico Brasileiro, da mesma forma que no restante do mundo, está passando por fortes mudanças principalmente nos dois extremos da cadeia de suprimento: na geração e nas unidades de consumo.
Essas mudanças têm sido motivadas pelo esforço de descarbonização, e principalmente pela redução drástica ocorrida na última década, principalmente, dos custos de painéis fotovoltaicos e unidades de geração eólica. Com essas mudanças tem havido forte investimento em geração fotovoltaica e eólica por parte dos supridores de energia, tornando-se esses tipos de fontes dominantes nas novas instalações. No lado das unidades de consumo, está cada vez mais, popularizando-se a auto- geração por painéis solares, criando-se uma rede de geração distribuída.
Esse movimento deve continuar no futuro próximo. A Agência Internacional de Energia (AIE) estima que a produção global de eletricidade quase duplicará durante as próximas três décadas, aumentando de cerca de 26 800 Terawatts-hora (TWh) em 2020 para mais de 50 000 TWh em 2050, sendo todo esse aumento feito por fontes com baixas emissões.
Estima a AIE que até 2050, a energia solar fotovoltaica e a eólica juntas representarão quase metade do fornecimento de eletricidade. A energia hidrelétrica também continua a se expandir, emergindo como a terceira maior fonte de energia. A energia nuclear mantém apenas sua quota de mercado global de cerca de 10%, liderada por aumentos na China. Uso de gás natural e carvão na geração de eletricidade apresentam queda substancial.
A AIE espera também que o hidrogênio e a amônia comecem a surgir como combustíveis para a produção de eletricidade ao redor de 2030, utilizado em grande parte em combinação com gás natural em turbinas a gás e com carvão em turbinas a carvão. Isto prolongaria a vida útil dos ativos existentes, contribuindo para o sistema elétrico reduzir emissões e custos de transformação.
Esse horizonte e essas estimativas podem induzir a considerar que essas fontes, especialmente fotovoltaica e eólica, continuarão sendo a solução exclusiva para a expansão da geração de eletricidade por representarem o menor custo de investimento.
Surge, no entanto, duas condições técnicas que dificultam sobremaneira essa solução de menor custo: (a) a falta de capacidade de controle de despacho dessas fontes (que dependem a cada instante da fonte solar ou eólica, ambas controladas pela natureza); e (b) a variabilidade da capacidade de geração dessas fontes tanto no ciclo diário, como mensal e anual.
Essas dificuldades exigem que outros tipos de fontes despacháveis estejam conectadas ao sistema junto com essas fontes intermitentes. Será também necessário que o sistema disponha de reserva de energia para complementar a capacidade dessas fontes nos períodos (diário, mensal e anual). No horizonte considerado pela AIE estima-se que fontes hidrelétricas (já existentes e futuras) e baterias possam suprir essas necessidades.
Quanto a hidrelétricas, inclusive usinas reversíveis, não resta dúvida técnica da capacidade de atender ao necessário. Resta, principalmente no caso brasileiro, o enfrentamento da dificuldade de permissão ambiental. E, no mundo como um todo, saber-se se ainda temos locais apropriados para centrais hidrelétricas.
Quanto a baterias, embora o custo das mesmas tenha mostrado bastante redução tem-se o problema da capacidade de armazenamento. Nas condições atuais, as baterias existentes no mercado permitem operação contínua por até quatro horas.
Antes de discutir o uso de baterias para armazenar energia para prazos maiores, discutamos a origem de tal necessidade.
Usinas fotovoltaicas operam normalmente durante 12 horas, porém sua geração, além de variável, sofre variação também durante o ano. Curvas do portal do ONS mostram que a geração no período de carga pesada durante o período abril-agosto e praticamente 60% da geração no período janeiro-março.
Da mesma forma as usinas eólicas também mostram variação horária, diária e anual. O mesmo portal do ONS mostra que a geração no período de carga pesada durante o período janeiro-abril e praticamente 60% da geração no período junho-outubro.
Portanto, uma estimativa rudimentar seria a necessidade de ter-se reserva de algo como 40% da capacidade instalada nas usines dessas fontes. Caso essa reserva seja feita com uso de baterias, a potência (em MW) instalada será de algumas vezes a necessidade devido ao tempo de descarga (ou seja, capacidade em MWh). Esse custo de armazenamento de energia deve ser considerado como parte integral da solução fotovoltaica/eólica.
Da mesma forma deve se considerar que para poder armazenar essa energia ela tem que ser gerada e, portanto, o sistema deve ser projetado com excesso de capacidade instalada em relação a carga para poder ter capacidade de armazenar energia e simultaneamente suprir a carga.
Considera a AIE a possibilidade de gerarmos hidrogênio verde para ser usado como combustível em centrais térmicas a vapor. Realmente o hidrogênio poderia ser gerado, armazenado e servir como combustível, portanto a reserva de energia seria em hidrogênio.
Essa solução, no entanto, também enfrenta grande dificuldade quanto a custo e lógica termodinâmica.
A produção de hidrogênio verde por eletrólise atualmente apresenta eficiência de 60%. O hidrogênio possui alta capacidade energética por peso, porém muito baixa por volume. Portanto, para seu transporte ou terá que ser comprimido, ou para longas distâncias usar gasodutos específicos ou ser liquefeito. A liquefação exige energia estimada em 30% energia do próprio hidrogênio, portanto eficiência de 70%. Para servir de reserva de energia o hidrogênio teria que ser armazenado. O mais usual seria na forma líquida o que além do custo da instalação, resulta em perda por evaporação estimando-se eficiência de 90%. Finalmente o hidrogênio seria usado em célula de combustível ou como combustível em usina térmica convencional. Em ambos os casos a eficiência de geração não supera 30 a 40%. Portanto o ciclo completo desde a fabricação do hidrogênio usando eletricidade, seu transporte, armazenamento e conversão novamente em eletricidade teria uma eficiência global de 15%.
Porém, fica a pergunta: e porque não se considera no planejamento da expansão a possibilidade de incluir usinas nucleares além dessas
fontes intermitentes?
Ora, porque nucleares são usinas de base, que operam sem fazer seguimento de carga!
Alguns artigos recentes desafiam essa crença.
O primeiro é um artigo publicado na revista Applied Energy de autoria de Jesse Jenkins, pesquisador do MIT Energy Initiative. Durante o verão de 2015, ele trabalhou como pesquisador no Laboratório Nacional de Argonne em dois projetos de sistemas de energia: um sobre o papel do armazenamento de energia em uma rede elétrica de baixo carbono e outro sobre o papel das usinas nucleares. Ligar os dois projetos, diz ele, teve o objetivo de utilizar novas fontes de flexibilidade operacional para integrar mais recursos renováveis na rede.
A conclusão dessa pesquisa foi que as centrais nucleares geralmente operam em plena capacidade, mas também são tecnicamente capazes de operar de forma mais flexível. Essa capacidade permite que elas respondam dinamicamente às mudanças sazonais na demanda ou às mudanças horárias. Os reatores também poderiam fornecer a regulação de reserva e os serviços de reserva necessários para equilibrar a oferta e a demanda. De acordo com Jenkins, todos os projetos de reatores atualmente licenciados ou em construção nos EUA, Canadá e Europa são capazes de operação flexível, assim como muitos reatores mais antigos atualmente em serviço.
O segundo artigo com a mesma conclusão foi publicado no HALL Open Science – Open and Share Knowledge de autoria de Patrick Morilhat, Stéphane Feutry, Christelle Le Maitre, Jean Melaine Favennec. Com o título Nuclear Power Plant flexibility at EDF.
A conclusão deste artigo indica que a operação flexível de reatores nucleares é possível e existe nos 58 reatores da EDF operando por mais de 30 anos. A EDF indica que não houve impacto perceptível ou incontrolável na segurança ou no meio ambiente, nem tampouco custos adicionais significativos de manutenção.
No entanto, a operação flexível requer um projeto adequado da usina (margens de segurança, equipamentos auxiliares) e treinamento adequado dos operadores.
Nessas três décadas essas usinas mostraram ter capacidade de operar com flexibilidade inclusive com duas reduções significativas de potência por dia, reduzindo a geração de 100% para 20% da potência nominal em meia hora. Essas operações são seguras e capazes de equilibrar a geração com a demanda, mesmo com energias renováveis na rede.
Para o futuro, ainda existe a intenção de incluir recursos de flexibilidade nas especificações para futuros pequenos reatores modulares (SMRs, unidades que variam de 50 a 300 MW). As usinas SMR eliminam muitos dos sistemas complexos encontrados em usinas nucleares convencionais. Essas usinas são fabricadas em módulos padronizados por cada fabricante e sua construção civil é simplificada. Seu menor porte e padronização permite sua instalação em mais variadas localizações e o aumento de sua segurança permite instalação mais próxima dos centros de carga tornando-as menos dispendiosas para construção e operação.
Fica, portanto, a pergunta: Por que não se considera no planejamento da expansão a possibilidade de incluir usinas nucleares além dessas fontes intermitentes?