Carlos Emiliano Eleutério*
Tecnologia precisa fazer parte da política de combate à fome e ao desperdício
Alimentos que poderiam matar a fome de milhares de pessoas abaixo da linha da pobreza no Brasil estão indo direto para o lixo, por falta de planejamento e tecnologia. Segundo estudo da ONU, o Brasil desperdiça por ano cerca de 27 milhões de toneladas de alimentos. Estima-se que 80% desse desperdício aconteçam no manuseio, transporte e centrais de abastecimento.
Este volume de alimentos poderia alimentar 12 milhões de pessoas por ano, conforme apontam dois outros estudos publicados em 2021 pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan) e pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA).
Enquanto isso, o Brasil chegou a marca dos 33,1 milhões de pessoas sem ter o que comer. Com a situação agravada pela pandemia, temos 14 milhões de brasileiros a mais em insegurança alimentar grave em 2022, na comparação com 2020, segundo dados recentes do IBGE. Dos 68,9 milhões de domicílios do País, 36,7% estavam com algum nível de insegurança alimentar, atingindo, ao todo, 84,9 milhões de pessoas, conforme dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) 2017-2018 de Análise da Segurança Alimentar no Brasil, feita pelo IBGE.
O paradoxo que essa relação fome X produção de alimentos mostra é surpreendente: o Brasil é autosuficiente neste campo e, portanto, não deveria haver fome por aqui. Mas infelizmente isso acontece, e tende a piorar com as mudanças climáticas. O último relatório do IPCC aponta para um declínio na pesca, aquicultura e produção agrícola entre os principais impactos projetados das mudanças climáticas no setor agrícola e alimentar. Os maiores rendimentos agrícolas serão impactados, especialmente na África Subsaariana, América Central e do Sul, Sul e Sudeste Asiático, além de uma redução na produção animal. Associado ao desperdício de alimentos, isso significa mais miséria e mais gente com fome no mundo.
O desperdício acontece por vários fatores, que vão desde a atrasada logística de distribuição até a contaminação por bactérias, parasitas, vírus e toxinas. A técnica de irradiação de alimentos poderia oferecer vários benefícios à sociedade, a partir de um modelo que não traz nenhum risco para o consumidor. E assim ajudar a resolver grande parte do problema da fome no País.
A irradiação evita que os alimentos apodreçam ou se tornem inadequados para o consumo humano e ajudaria a garantir segurança alimentar no País. A vida útil de algumas frutas, por exemplo, pode passar de vinte para noventa dias, depois de irradiada.
A irradiação de alimentos é um processo semelhante à pasteurização térmica ou ao congelamento. Consiste na exposição do alimento, embalado ou não, a um dos três tipos de energia ionizante, que são os raios gama, raios-x ou feixe de elétrons. Pode ser usada em cereais, frutas, carnes, leite, vegetais,
frutos-do-mar etc.
Em relação à segurança do procedimento, o Centers for Disease Control and Prevention (CDC), dos EUA, e a Organização Mundial de Saúde (OMS) garantem que os alimentos submetidos à irradiação não armazenam substâncias tóxicas para o organismo humano, pois os níveis de radiação que sofrem são muito baixos e controlados. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) afirma que a irradiação de alimentos tem finalidade sanitária, fitossanitária e tecnológica, e os alimentos que passam por este processo são totalmente seguros para o consumo humano.
Um dos poucos obstáculos que a técnica enfrenta se resume a uma certa resistência do consumidor à compra desse tipo de produto – um desafio da Comunicação Científica que os profissionais do setor nuclear terão de resolver. E por isso é pouco explorada pelas indústrias brasileiras, além do custo de instalação dos equipamentos. Mas muitas empresas, inclusive internacionais, já manifestaram interesse em desenvolver projetos de irradiação de alimentos no Brasil, e reclamam apenas da falta de definição, apoio e regras mais claras do Governo. Desafio para a recém-criada Autoridade Nacional de Segurança Nuclear (ANSN), que deverá começar a operar ainda este ano.
No Brasil, embora os governos e as agências de fiscalização conheçam a segurança do processo de irradiação de alimentos, o uso da tecnologia ainda é insignificante. O crescente interesse nessa técnica já chegou ao Agronegócio, responsável por40% do PIB brasileiro, com forte potencial de exportação. Isso pode ser um fator de estímulo à consolidação da tecnologia por aqui.
Mas quem tem fome, tem pressa. E a irradiação pode ser uma ótima aliada na solução desse problema no Brasil. Falta, portanto, vontade política para fazer esse projeto avançar, não apenas para beneficiar o Agronegócio, mas também como ferramenta social e ambiental de política pública, contribuindo de maneira séria com a reversão das mudanças climáticas, redução do desperdício de alimentos e combate à fome. Tecnologia já existe. É preciso agora objetividade para planejar e priorizar os recursos necessários, sejam tecnológicos, humanos e econômicos. Está na hora de parar de ver tanta gente passando fome num país que produz tanto.
*Carlos Emiliano Eleutério é jornalista, editor do Blog Papo Nuclear e responsável pela realização do SIEN - Seminário Internacional de Energia Nuclear